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Anacorese (Parte IV)

 

Dom Mateus de Salles Penteado, OSB
 

 

ANACORESE (Parte IV)

 

A anacorese monástica (final)

 

3. Do século XIII aos dias atuais

 

No século XIII surgiram as Ordens Mendicantes, dominicanos e franciscanos, que, mesmo não sendo monges, mantiveram um quadro de observância monástica (portanto, de anacorese, vida retirada do mundo) no interior dos conventos. Os respectivos ramos femininos, porém, eram (e ainda são) constituídos por monjas contemplativas vivendo em clausura, ainda hoje às vezes bastante rigorosa. São Domingos fundou o primeiro mosteiro de monjas em 1206/1207, antes mesmo da fundação da Ordem masculina. Santa Clara de Assis († 1253), por sua vez, seguidora de São Francisco, deu início à Ordem Segunda Franciscana em 1212. Recebeu a tradição monástica em um mosteiro beneditino, mas posteriormente escreveu uma Regra própria (a primeira Regra feminina escrita por uma mulher), recebendo do Papa Gregório IX o “privilégio da pobreza”. A Regra de Santa Clara foi aprovada pelo Papa Inocêncio IV em 1253. Também de meados do século XIII é a fundação das monjas agostinianas. Quanto às carmelitas, a vida propriamente monástica começou somente no século XV, sendo reformadas no século XVI por Santa Teresa de Ávila († 1582), com especial ênfase na clausura.

Não é o caso aqui de apresentar todas as Ordens monásticas e sua evolução histórica, mas é preciso notar que todos os movimentos reformadores, voltados à recuperação da vitalidade do monaquismo, sempre incluíram em seus projetos uma resoluta retomada da anacorese. Foi o caso, por exemplo, do Mosteiro de São Bento de Valladolid, na Espanha, fundado em 1390, famoso pelo rigor da clausura, que deu origem a uma Congregação beneditina com o mesmo nome. Posteriormente a Congregação de Valladolid influiu na reforma dos mosteiros portugueses e, por conseguinte, no estilo de vida dos primeiros mosteiros beneditinos fundados no Brasil ainda no século XVI. Por seu lado, um grupo de mosteiros da Ordem Cisterciense empreendeu no século XVII um movimento de reforma, dando origem à Ordem Cisterciense da Estrita Observância, cujos monges são conhecidos como “trapistas”, por causa da Abadia de Notre-Dame de la Trappe, na França, um dos mosteiros reformados, à frente da qual estava o austero abade Armand Jean Le Bouthillier de Rancé († 1700). Os trapistas são conhecidos pelo seu zelo pela separação do mundo.

A Revolução Francesa (1789), extremamente anticlerical, fechou todos os mosteiros do país. Em seguida o espírito revolucionário foi levado pela Europa afora por Napoleão († 1821) ou por regimes influenciados pela Revolução. A vida monástica parecia estar condenada ao desaparecimento não apenas na Europa, mas também no Brasil, cujos mosteiros foram impedidos pelo Estado de receberem noviços. Na Europa, passado o tsunami revolucionário, a vida monástica foi retomada na França por Dom Prosper Guéranger († 1875) ao restabelecer o antigo Priorado de Solesmes, que foi elevado à condição de abadia em 1837. Solesmes se destacou pelo trabalho intelectual, histórico e litúrgico (incluindo a restauração do canto gregoriano), pela austeridade monástica, pelo amor ao silêncio e, naturalmente, pela recuperação da anacorese monástica. Um dos grandes sucessores de Dom Guéranger, o Abade Dom Paul Delatte († 1937), ensinou em seu Comentário da Regra de São Bento que os monges deveriam observar o rigor da clausura das monjas, pois o espírito é o mesmo, lembrando que “elas têm a integridade do privilégio”, talvez em referência ao “privilégio da pobreza” obtido por Santa Clara.

Na Itália, a Congregação Beneditina Cassinense viu nascer em seu seio um movimento reformador, obra de Dom Pietro Francesco Casaretto († 1878), originando-se a Congregação Beneditina Cassinense da Primitiva Observância, que em 1967 passou a ser denominada Congregação Sublacense. Em 2013, com a incorporação dos mosteiros da antiga Congregação Cassinense, mudou novamente de nome, desta vez para Congregação Beneditina Sublacense Cassinense (à qual pertence a nossa Abadia da Ressurreição). Embora de origem italiana, a Congregação Sublacense assumiu quase imediatamente um caráter internacional, recebendo muita influência francesa com a incorporação, em 1859, do Mosteiro de La Pierre-qui-Vire, fundado pelo Padre Jean-Baptiste Muard († 1854), que, juntamente com dois companheiros, fez seu noviciado e recebeu a tradição monástica no mosteiro trapista de Aiguebelle – não é, pois, casual o seu grande apreço pelo silêncio, trabalho manual, austeridade e anacorese. Pela mesma época, a Congregação Beneditina de Beuron, Alemanha, foi fundada pelos irmãos Mauro e Plácido Wolter, dois padres diocesanos que haviam ingressado na Abadia de São Paulo fora dos Muros, em Roma. Com a bênção do seu abade e do Papa Beato Pio IX ambos retornaram à Alemanha para realizarem uma fundação espelhada no ideal monástico de Solesmes. Dom Mauro Wolter († 1890), primeiro Arquiabade da Congregação, comparava a clausura do Mosteiro com a muralha que cerca um castelo, garantindo a separação do mundo. A clausura possibilita o silêncio interior, que é, em suas palavras, “proteção da vida regular, pedra de toque da observância, chave do progresso na vida claustral, base da piedade, auxílio e proteção para as virtudes, selo do esposo celeste profundamente impresso na alma”. A Congregação de Beuron, oficializada em 1885, foi encarregada pela Santa Sé de restaurar os mosteiros brasileiros, que definhavam em razão da proibição, por parte do governo imperial, de receberem noviços – a proclamação da República em 1889 e a subsequente separação da Igreja e do Estado permitiram a recuperação desses mosteiros, iniciada em 1895. Dois anos antes o Papa Leão XIII havia criado a Confederação Beneditina, unindo as diversas Congregações beneditinas, que, juntas, passaram a formar a Ordem de São Bento tal como é estruturada hoje, contando, atualmente, com 19 Congregações (até então, a Ordem não tinha uma unidade jurídica).

No século XX, o Concílio Vaticano II (1962-1965) direcionou toda a Igreja para uma volta às suas fontes mais puras, por isso pedindo igualmente aos religiosos que se renovassem por meio de um retorno às suas raízes. Ora, como vimos, a anacorese, ou separação do mundo, é um elemento essencial à vida monástica. Na verdade, a anacorese é característica da própria fenomenologia do monaquismo em si mesmo, de qualquer religião, sendo assumida, por exemplo, por monges budistas e hinduístas – às vezes de maneira radical. Essa constatação certamente não implica uma negação da legitimidade do monaquismo urbano, que sempre existiu, mas a prática da anacorese (de maior ou menor rigor) não pode faltar a nenhum mosteiro e a nenhum monge, urbano ou não, pois, nesse caso, tal vida monástica seria apenas um simulacro, uma casca vazia de conteúdo, uma contradictio in terminis, uma realidade canônica, mas sem alma. O que pede a Igreja aos monges de hoje? Para responder a essa pergunta, ninguém melhor do que o Beato Paulo VI, o papa que conduziu a maior parte dos trabalhos do Concílio e que realizou as reformas que se lhe seguiram. Dirigindo-se aos monges, disse ele: “Também a vós é confiada uma tarefa pastoral, mas a vossa autêntica atividade pastoral é a vida escondida. Por isso, não deveis mudar aqueles princípios essenciais da vossa vida, que são a separação do mundo e a fiel observância da Regra” (8.12.1968).

A vida misteriosamente oculta e fecunda, operosa e silenciosa dos monges e monjas não é facilmente compreendida, até mesmo por cristãos, particularmente em nossos dias, tão dominados pelo materialismo consumista e pelo ativismo desenfreado e oco, nos quais o valor das instituições e das pessoas é avaliado apenas por critérios “utilitários” de produção quantificável (ainda que seja uma produção “pastoral” ou “espiritual”). Por essa mesma razão, mais do que em outros tempos, a anacorese monástica é um vigoroso sinal do Reino futuro e dos valores evangélicos que devem permear este mundo que passa – um sinal voltado não apenas aos “de fora”, mas também aos próprios católicos. Conforme Enzo Bianchi, Prior da Comunidade de Bose (Itália), o monaquismo deve estar não somente na periferia da sociedade, mas também na periferia da Igreja. Destarte, se desejam ser fiéis ao chamado que receberam à oração incessante e à unificação do coração no Único necessário, não basta aos monges e monjas da atualidade se retirar fisicamente do mundo, mas também devem evitar que o mundo penetre em suas clausuras através do uso imoderado e vicioso dos meios de comunicação. Uma anacorese monástica imersa na TV, nas redes sociais (com sua multidão de “amigos” virtuais), nos tablets e nos telefones celulares fundamenta-se na ilusão e alimenta-se de narcisismo, não merecendo, por isso, o nome de anacorese, mas de hipocrisia. A diaconia (“serviço”) dos monges e monjas à Igreja é realizada mediante uma séria e efetiva anacorese, física e espiritual, pois esse retiro do mundo não visa uma busca egoísta de si, mas a elevação do universo inteiro ao Deus único, Criador, Redentor e Santificador, na certeza de que “é monge aquele que é separado de todos e unido a todos”, conforme o ensinamento de Evágrio Pôntico († 399) em seu Tratado sobre a Oração, escrito na solidão do deserto do Egito (De Or. 124).