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Anacorese (Parte II)

Dom Mateus de Salles Penteado, OSB
 

 

ANACORESE (Parte II)

A Anacorese monástica

1. A anacorese no monaquismo das origens

 

Vimos anteriormente (cf. Artigo, Parte I) que o Novo Testamento exige de todos os cristãos uma separação afetiva do mundo, isto é, uma anacorese espiritual. A Igreja dos três primeiros séculos tinha forte consciência de que o discípulo de Jesus deve estar no mundo sem ser do mundo. A partir do início do século IV essa situação começou a mudar. No ano 312 o imperador Constantino converteu-se ao cristianismo e, no ano seguinte, com o companheiro Licínio, assinou o famoso Edito de Milão, que concedeu liberdade religiosa à Igreja, tirando-a da clandestinidade. Até então os cristãos tinham sido perseguidos e podiam ser condenados à morte pelo simples fato de serem cristãos. Agora, não apenas a Igreja estava legalizada como o próprio imperador era cristão. Além disso, a partir do ano 324, depois de se livrar de seus adversários, Constantino tornou-se o único governante do Império Romano. A Igreja começou a receber muitos favores por parte do governo, e a religião cristã passou a ser atraente para pessoas sem convicções profundas de fé. As conversões se multiplicaram, mas muitos se tornavam cristãos apenas superficialmente, às vezes apenas de olho nas vantagens políticas e econômicas que começavam a surgir. O Estado foi se aproximando cada vez mais da Igreja, até fazer do cristianismo a religião oficial do Império, sob o reinado de Teodósio († 395). Com isso, o nível de fervor das comunidades cristãs caiu muito, havendo até mesmo o risco de se identificar o Império Romano (cristão) com o Reino de Deus na terra, ou, em outros termos, de se igualar Igreja e mundo. O movimento monástico surgiu como um reavivamento da perene incompatibilidade entre o cristianismo e o mundo. Daí dizer-se que a novidade na Igreja não foi o surgimento do monaquismo, mas, sim, o relaxamento de grande parte das comunidades cristãs. Os primeiros monges e monjas eram simplesmente aqueles que queriam continuar sendo a Igreja “em fuga” no deserto do mundo, conforme a imagem do Apocalipse (cf. Ap 12,6). Assim, à anacorese espiritual (que todos os cristãos deveriam praticar), acrescentaram a anacorese física, afastando-se das cidades e aldeias e adentrando nos desertos, florestas, montanhas e ilhas, para viverem sozinhos (eremitas) ou em comunidades (cenobitas). Para os monges, a separação do mundo não deve ser apenas afetiva, mas também efetiva.

Esse tema do deserto é muito caro ao monaquismo. Os profetas já haviam denunciado a mediocridade na prática religiosa e desenvolveram uma “espiritualidade do deserto”. Lugar de desolação, o deserto era considerado habitação e domínio do demônio (sendo, por isso, uma imagem “deste mundo”). Abandonado no deserto, nenhum ser humano pode sobreviver e, por essa razão, mais do que em outros lugares, é lá que o poder de Deus se manifesta. Foi nessa solidão que Deus educou e guiou o seu povo por quarenta anos, e estabeleceu com ele a Aliança.

A concepção do deserto como habitação do demônio é retomada pelo Novo Testamento: “Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos em busca do repouso” (Mt 12,43). O próprio Jesus retirou-se no deserto para ser tentado pelo diabo. O deserto é o “tipo” (“figura”) do mundo: é hostil a Deus e submisso a Satanás, mas é também aonde o Messias vem trazer a vida nova. Por isso, no mesmo lugar onde João Batista anunciou a primeira vinda do Cristo, os monges quiseram anunciar a Parusia (palavra grega que significa “presença”, “vinda”), isto é, a sua segunda vinda, desta vez gloriosa, que ocorrerá no fim dos tempos. Um rápido sobrevoo histórico demonstra claramente o grande apreço dos pais do monaquismo pela vida oculta no deserto, pela separação física do mundo, ou seja, pela anacorese.

Santo Antão († 356) é considerado o “primeiro monge” não porque tenha sido realmente o primeiro, já que o monaquismo cristão não tem um fundador como as Congregações modernas – prova disso é que o próprio Antão foi discípulo de um monge anônimo –, mas porque ele é o primeiro sobre quem temos uma documentação escrita, constituída por sua biografia (redigida por Santo Atanásio), bem como por sentenças (apoftegmas) e cartas. Emblematicamente, porém, podemos dizer que o monaquismo cristão nasceu por volta do ano 276, quando Santo Antão deixou o seu vilarejo de Queman, no Egito, e embrenhou-se no deserto, saindo fisicamente do “mundo”, acrescentando a anacorese à renúncia fundamental do celibato por causa do Reino – até então, o celibato era o único elemento que distinguia os ascetas e virgens (diríamos hoje os “religiosos”) dos leigos. Imediatamente Antão teve muitos seguidores, que povoaram os desertos do Egito, Palestina e Síria. São Pacômio († 346), por sua vez, é considerado o “fundador” do cenobitismo (monaquismo de vida comunitária), sempre no mesmo sentido mencionado acima. Mas, no tocante à anacorese, a vida monástica cenobítica não era menos exigente do que a eremítica: os mosteiros pacomianos estavam situados fora das cidades e eram rodeados por muros de clausura, fora dos quais os monges raramente saíam e dentro dos quais ninguém entrava.

No ano 400, no Ocidente latino, Sulpício Severo publicou a biografia de São Martinho († 397), que é tido como o “primeiro monge” ocidental. Filho de militar e ele mesmo militar, discípulo de Santo Hilário de Poitiers, Martinho iniciou a vida anacorética fora dos muros de Milão, indo depois para a ilha Galinária (região norte-ocidental da Itália) e para as vizinhanças da cidade Poitiers (na Gália, atual França), onde mais tarde surgirá o Mosteiro de Ligugé (hoje um mosteiro beneditino). Feito bispo de Tours (371), não quis abandonar a anacorese e procurou conciliar o ministério episcopal e a vida monástica, habitando em uma cela a três quilômetros da cidade, dando origem ao Mosteiro de Marmoutier (extinto em 1789, pela Revolução Francesa).

Com o avanço das invasões bárbaras no Ocidente, o imperador deixou Treves (na atual Alemanha) e estabeleceu residência em Milão. A prefeitura das Gálias foi transferida para Arles (no sul da França hodierna) e, não por coincidência, a vida monástica começou a florescer mais nessa região. Assim, por volta de 405-410 o jovem Santo Honorato retirou-se com o amigo Caprásio para a ilha de Lerinos (Lérins), para aí abraçarem a vida ascética. Essa ilha, então desértica e selvagem, tornou-se logo um importante centro monástico. Os monges aí seguiam o modelo oriental de radical separação topográfica da civilização urbana da época, julgando o mundo uma prisão e considerando a ascese como a verdadeira liberdade. Pouco antes, longe dali, em Belém, o grande erudito e monge zeloso que era São Jerônimo († 420) escrevia: “João Batista foi para o deserto. Belo este costume de se afastar dos homens para estreitar relações com os anjos; desprezar as cidades para encontrar Cristo na solidão” (Hom. sobre o Ev. de Mc, I). E criticava Heliodoro, um monge relaxado na anacorese: “Considera o nome de monge que levas: que fazes em meio à multidão, tu que és 'só' por definição?” (Carta 14,6).

Tradições cenobíticas primordiais, tanto orientais como ocidentais, representadas principalmente por São Basílio e por Santo Agostinho, também valorizam a anacorese física como elemento constitutivo da vida monástica. São Basílio († 379) ensina que a anacorese essencial para qualquer cristão é aquela espiritual, que o separa do pecado, mas reconhece que, para ser alcançada, a anacorese física é de grande auxílio. E escreve: “Viver em lugar afastado ajuda a alma a não se dispersar. De fato, é nocivo viver em meio àqueles que não têm temor algum, mas que, ao contrário, mostram desprezo diante da perfeita observância dos mandamentos” (Regras Longas 6,1). Determina que as relações com o exterior devem ser reduzidas ao mínimo, e que somente aqueles que podem viajar sem prejudicar a própria alma terão autorização para sair do mosteiro. E, como sempre, é rigoroso: “Se não há ninguém idôneo para isso, é melhor suportar quaisquer tribulações e dificuldades, e até a morte, por falta do necessário, do que negligenciar um inevitável dano espiritual para se obter um alívio material” (Regras Longas, 44,1). Santo Agostinho, por sua vez, ao se converter ao catolicismo em 386, abraçou concomitantemente a anacorese, e, antes mesmo do batismo, retirou-se com alguns amigos para Cassicíaco (perto de Milão).

João Cassiano († 435) é de origem ocidental, mas viajou ao Oriente para se tornar monge. Retornando ao Ocidente, especificamente ao sul da Gália, desejou transmitir aos ocidentais o ideal do monaquismo egípcio, que acentua bastante a anacorese. Para ele, é da natureza do monaquismo ser “extra civitatem”, fora da cidade. Um século depois, São Cesário de Arles († 543) escreveu a primeira Regra monástica dirigida diretamente às mulheres, estabelecendo uma clausura estrita para as monjas, que, ingressando no mosteiro, dele nunca mais saíam. Seu contemporâneo São Bento († cerca de 547), quando foi a Roma para estudar, deu-se conta dos perigos e vaidades do mundo, “e desejando agradar somente a Deus, procurou o hábito da vida monástica” (nas palavras de seu biógrafo, São Gregório Magno). Notemos que São Bento poderia ter ingressado em um mosteiro urbano, dentro dos muros de Roma, mas preferiu buscar a solidão de Subiaco e, mais tarde, a de Monte Cassino. Sintetizando em sua Regra a tradição anterior, tanto ocidental como oriental, São Bento estabeleceu claramente a prática da anacorese: “Seja o mosteiro, se possível, construído de tal modo que todas as coisas necessárias, isto é, água, moinho, horta e os diversos ofícios, se exerçam dentro do mosteiro, para que não haja necessidade de os monges vaguearem fora, porque de nenhum modo convém às suas almas” (RB 66,6). Por essa mesma época, o monaquismo irlandês, embora acentuadamente missionário e penitente, tampouco desvalorizou a separação do mundo – ao contrário –, acrescentando-lhe ainda, com frequência, a “xeniteia” (“permanência no estrangeiro”, ou “exílio voluntário”). Seu maior representante é São Columbano († 615).

Constatamos, pois, facilmente, que todas as tradições antigas e basilares do monaquismo cristão são unânimes em assumir uma “vida escondida com Cristo, em Deus” (Cl 3,3), recomendando aos monges e monjas o afastamento físico do mundo.